A cidade dormiu.
As ruas piscaram miudinho nas lâmpadas, apagaram a brasa dos
últimos cigarros e levaram todos para casa. As ruas queriam sossego. O silêncio
tomou conta das coisas e preparou-as para o repouso.
Mas os olhos brincaram de sonâmbulos.
Haviam esquecido o sono em algum lugar e não o sabiam encontrar.
Ou, talvez, quisessem ver a noite para descobrir nela uma sombra nova. Por
isso, faziam serão.
É bom a gente crescer e olhar o escuro bem escuro, sem medo.
Transformar fantasmas em figuras de dança, de circo ou em fantoches irreais.
A cortina vestiu logo de gala uma forma jovem e o vento deu-lhe
passos de ensaio para a primeira estréia. Uma roupa caída sobre a cadeira era
um sonho trágico que a noite amarrotara, ou do qual levara a alma para um
passeio distante, não se sabia onde. Era alguém abandonado ou ferido,
desfalecendo lentamente.
O espelho tinha uma assombração novinha, arriscando um reflexo
forte para provocar a escuridão. Ele desenhava nas paredes com giz luminoso,
como se a noite fosse toda sua.
E havia também o que só a atmosfera trazia, a atmosfera e os olhos
abertos, dentro das sombras, acompanhando as horas. Eram figuras fantásticas,
variadas e móveis que sabiam correr, subir e voltar de novo, ora intensas, ora
meio eclipsadas, irritadas sempre por não encontrarem a quem assustar. Elas
começavam a envergonhar-se junto ao meio sorriso que escapava dos lábios
semi-infantis.
É bom a gente encontrar o escuro e não se assombrar. Permanecer
tranquila, decorando-lhe a face opaca. Apalpar-lhe o corpo e sentí-lo
vulnerável. Deixá-lo exibir-se inocente, descobrindo nele uma história pitoresca.
É bom poder detê-lo, esperando com calma alguma luz que vai surgir
a qualquer hora – não se sabe de onde – para o encantamento dos olhos.
Suportá-lo com uma paciência espichada, advinhando-o efêmero.
É agradável contorná-lo com gestos serenos que acariciam seus
duendes ou abraçar-se a ele sem temor. Entregar-lhe até os olhos que se vão
fechar num momento imprevisto, sob sua guarda e proteção. Beijar-lhe os lábios
que chegam perto e, cansados da tentativa inútil de amedrontar, se fazem mansos
e enfeitam o silêncio.
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